sexta-feira, 8 de julho de 2022

PALAVRA DO ESPECIALISTA

Depressão como consequência da racionalidade e os caminhos para amenizá-la


Imagem extraída de saude.abril.com

Diferentemente dos demais animais direcionados por instintos absolutos, que orientam e determinam seu agir e querer, o ser humano pensa sobre si mesmo, valida ou invalida seus instintos e pondera sobre a realidade concreta e o mundo possível. Esse ser distinto, não controlado pelas determinações instintivas, desenvolve desejos, estabelece metas; anseia. Esse ser pensa. Apesar da influência social, seu pensamento não se limita às determinações psíquicas de sua espécie ou de sua raça. O homem, como indivíduo dotado de liberdade, curiosidade, criatividade e desejo, almeja relações ou coisas a partir de sua subjetividade, de sua interioridade, amiúde, independente de quaisquer convenções coletivas ou influências sociais diretas. O indivíduo humano processa suas experiências existenciais interpretando-as. Tal interpretação nem sempre se dá com a clareza racional, regularmente se realiza amalgamada com emoções. Sendo de tal forma distinto, o animal humano sofre, pois, em sua subjetividade, se fazendo um "eu" não aderido ao coletivo, não se satisfaz com as convenções, não se contenta com o estabelecido, em sua peculiaridade de “ser um si mesmo”, em suas aspirações únicas, singulares, percebe-se deslocado.

As intrínsecas e peculiares características do homem fazem dele um ser com potencial à depressão. De acordo com o site Biblioteca Virtual em Saúde:

A depressão é uma doença que se caracteriza por um período mínimo de duas semanas em que a pessoa se sente triste, melancólica ou “para baixo”, com sensações de aperto no peito (angústia), inquietação (ansiedade), desânimo e falta de energia. O indivíduo permanece apático, perde a motivação, acha tudo sem graça ou sem sentido, torna-se pessimista e preocupado. Tal estado afeta o organismo como um todo e compromete o sono, o apetite e a disposição física.[1]

Um ser que pensa por si, que estabelece ideias sobre o bem e o mau, sobre o adequado e o inadequado, sobre o ideal e o imperfeito, a partir de sua interpretação da realidade estabelece expectativas sobre sua vida, essa expectação se faz um dos fatores de maior potencial para o desenvolvimento da depressão. Um ser que almeja, é em potencial um ser que se frustra. Um sujeito que avalia, em potencial, não é apenas alguém que qualifica o outro, o objeto externo, mas um indivíduo que tende a cobrar-se. Uma pessoa que idealiza a realidade a partir de um quadro comparativo, tem uma forte tendência a se entristecer por perceber que sua vida ou o seu ser não alcançam o nível ou o status do objeto ou de uma condição existencial eleitos como adequados.

O Livro Sacro dos judeus, chamado de Antigo Testamento pelos cristãos, expõe a fragilidade emocional desse ser que desenvolve expectativas, se frustrando com o não estabelecimento daquilo que considera assaz importante, mesmo tendo, em sua literatura, vários desses homens considerados heróis. Em uma explícita situação de melancolia, um dos traços marcantes da depressão, o livro de juízes, pertencente à coleção bíblica judaico-cristã, apresenta Gideão, um dos notáveis homens da Bíblia, frustrado com Deus, pois sua crença e esperança em uma divindade intervencionista a favor de seu povo, em prol de sua nação, não se concretizou. A partir da fala de um mensageiro, de que Deus era com ele, o herói frustrado com a não concretização de sua expectativa, em estado depressivo, responde: “se o Senhor está conosco, por que aconteceu tudo isso? Onde estão todas as suas maravilhas que os nossos pais nos contam quando dizem: ‘Não foi o Senhor que nos tirou do Egito?’ Mas agora o Senhor nos abandonou e nos entregou nas mãos de Midiã”.[2]

Na passagem em destaque, o estado de prostração e de pessimismo de Gideão é de fácil identificação. O homem e mulher, que mentalmente estipula situações corretas ou incorretas, favoráveis ou desfavoráveis, justas ou injustas, ao se deparar com o que ele ou ela entende como realização negativa, como quadro adverso, entra no estado melancólico, de acentuado pessimismo, ao qual chamamos de depressão. Ainda envolvido no mesmo diálogo com o mensageiro de Deus, que afirma que seu Senhor estaria com ele na missão de libertar o seu povo da opressão introduzida pelos inimigos midianitas, o depressivo Gideão continua em tom de descrença: “Ah, Senhor", respondeu Gideão, "como posso libertar Israel? Meu clã é o menos importante de Manassés, e eu sou o menor da minha família”.[3] Essa nova resposta revela a baixa autoestima, sentimento negativo sobre si mesmo, que impede de o indivíduo perceber em si qualidades ou potencialidades, um dos sintomas de alguém que está em depressão ou a desenvolvê-la.

A filosofia estoica apresenta duas virtudes que ajudam a proteger o ser humano da depressão. A aphateia, ou ausência de paixões e a resignação, isto é, aceitação ao inexorável, ao que não pode ser mudado, ao inevitável.  Quanto menos paixão pelas coisas, mais desapegados somos, menos sofremos, porque menos esperamos, assim, nutrimos menos expectativas. Ademais, se somos resignados sofremos menos porque aprendemos a aceitar o já estabelecido em nossas vidas ou em nossa realidade. Aprendemos aceitar o que não depende de nossos esforços para ser evitado. Porém, a proposta estoica não elimina a pergunta: como alcançar as destacadas virtudes? Está em nosso poder alcançá-las. O nosso desejo de alcançar a resignação ou a aphateia garante a sua realização?

O cristianismo antigo apresenta direções que, apesar de não invalidar a proposta estoica, apresenta um outro sentido para o apaziguamento da alma: “Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo”.[4] Se é um fato de que na existência somos confrontados com a dureza do mundo, afrontamento esse que pode nos levar à depressão, sob outra perspectiva, podemos olhar para o triunfo de Jesus como inspiração, e inspirados nele temos a força suficiente para triunfar, vencendo as aflições que, por vezes, nos esmorecem. Em Cristo temos a certeza de que firmados em seu triunfo, também podemos triunfar. O salmista Davi, em um dos salmos mais belos, poetiza: 

 

O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará.
Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.
Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.

Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. [...]

Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias.

Essa bela poesia apresenta o estado de paz vivenciado por um indivíduo que, apesar de passar por situações difíceis e extremas, revela a segurança e conforto de alguém que nutre uma relação com Deus.

A razão e a criticidade são fundamentais para o desenvolvimento do homem, sem essas ferramentas racionais, seguramente estaríamos em um estágio intelectual primitivo, porém, como diz Jesus, nem só de pão vive o homem. É indubitável que a praticidade e a racionalidade da vida objetiva são muito importantes para o desenvolvimento do homem, para o seu aperfeiçoamento, para o estabelecimento de estruturas que possibilitaram maior conforto para a vida, porém, o aspecto prático e objetivo não esgotam a vida humana e as necessidades do homem. A ciência, a psicologia e as disciplinas humanas como a filosofia e a sociologia, apresentam importantes reflexões para o problema da depressão, ponderações que devem ser seriamente consideradas. Porém, os problemas do homem e da mulher também podem ser abordados por outros prismas. Todo cristão assume que o homem em sua integralidade é uno em corpo e alma. Com essa múltipla dimensão de una composição, o cristianismo aponta outras respostas para a angústia do homem, e nessa resposta apresenta a necessidade de o indivíduo humano se relacionar com o transcendente, com Deus. Nessa relação ele pode encontrar um novo sentido para a sua existência, diminuindo a ansiedade promovida pelo desejo exacerbado de pertencimento, de satisfação estética, de aceitação social ou mesmo de um individualista desejo de justiça limitado pelo egocêntrico desejo de autossatisfação, que não contempla a profundidade da justiça ideal. Em Cristo, vencer o mundo é o estabelecimento do triunfo sobre o que é danoso ao ser humano. A depressão é um dano ao ser humano. Todo homem e toda mulher devem se sentir convidados a buscar a cura em Cristo e em sua palavra inspiradora que promove vida, pois essa angústia pode ser apaziguada pela fé, pela relação do homem com Deus. 

07/07/22




Prof. Lailson Castanha
Graduado em Filosofia. Atua como professor nessa disciplina para o Ensino Médio. São  Paulo - SP


Acesse os links abaixo e conheça melhor as reflexões filósoficas desse professor e seu olhar sobre  outros temas  .
                      



[1] MORENO, Ricardo. Temas em psiquiatria. IPq HCFMUSP, 2016. Disponível em: http://neurociencias.org.br/temas-em-psiquiatria/. Acesso em: 07 jul. 2022.

[2] BÍBLIA ONLINE. Juízes 6:13. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/jz/6/. Acesso em: 07 jul. 2022.

  

[3] BÍBLIA ONLINE. Juízes 6:15. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/jz/6/. Acesso em: 07 jul. 2022.

  

[4] BÍBLIAON. JOÃO 16: 33. Disponível em: https:// https://www.bibliaon.com/joao_16/. Acesso em: 07 jul. 2022.


3 comentários:

  1. Prof. Lailson, seu texto é um aula pedagógica e nos provoca à reflexão. Maravilhoso!

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    1. Prezada Ane,
      Agradeço por seu comentário sobre a exposição do texto do prof. Lailson, que, de fato, são claros e coesos. Aproveito para lembrar que, desejando interagir com ele e/ou conhecer melhor suas exposições, você poderá acessar seus materiais através dos links disponíveis. Um abraço

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  2. Para corroborar com esse belíssimo texto, postarei um belo e esclarecedor poema no qual o eu lírico fala sobre o sentimento de uma pessoa em depressão:

    INFORTÚNIO
    Correntes marítimas
    Inundam minha vida.
    Iceberg invade o meu mar
    Congelando a minha alma
    Paralisando o meu ser.

    O astro centro do meu planeta,
    Densas trevas ofuscam sua luz.
    Seus raios cintilantes, aquecedor
    Escuras nuvens os encobrem.
    Ventos congelantes invadem meu planeta!

    Entre lágrimasa e soluços
    Pranteio a minha sorte.
    Busco explicação que a mim é velada;
    Os mistérios da vida a ninguém se
    descobre.

    Estou em queda livre...
    Aonde segurar-me em plena descida?
    Só os teus braços, Jesus
    Podem me amparar,
    Aquecer a minha alma,
    Agasalhar o meu coração.

    Liliane Castanha
    27/06/2015

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