Millôr Fernandes, arguto inquiridor das aparentes
obviedades, tem frase que nos provoca a reflexão: “Se você não tem dúvidas é
porque está mal-informado”.
O impacto da frase vem da nossa percepção usual (muitas vezes
equivocada) de que a presença da dúvida é caminho para a ignorância; quando,
especialmente em Ciências, é quando ela se apresenta que começamos a abandonar o
desconhecido.
Cautela com gente que não tem dúvidas! Gente assim não inova, não avança,
não cria; só repete e redunda. Claro que não podemos ser alguém que só tem
dúvidas, pois se assim for qualquer ação e intervenção fica impossibilitada; no
entanto, não ter algumas delas em alguns momentos é sinal de tolice e
reducionismo mental.
A ciência só renova quando seus praticantes são capazes de colocar
sob suspeita algumas das certezas às quais não expomos. Será que isto é assim
mesmo? Será que não há outro modo de fazer? Será que isto não resulta mais de
hábito do que de verdade? Será que aceito o argumento pela autoridade que o
proclama em vez de buscar os fundamentos da veracidade do proclamador? Será?
Os “serás”, quando metódicos e
sistemáticos, ajudam-nos a dar vigor às certezas e conhecimentos que
nossas teorias e práticas devem ter; em todas as situações nas quais não admitimos
a presença de indagações e questionamentos, aproximamo-nos do dogmatismo, e
este sempre foi o principal veículo de degradação do saber científico.
Um pessoa inteligente, com humildade e sabedoria, é aquela que
consolida as certezas do que deve fazer a partir da capacidade de não supor que
estas são imutáveis e invulneráveis. Afinal, sabemos, a melhor maneira de ficar
vulnerável é pensar-se como invulnerável...
Em 399 a.C., em Atenas, Sócrates foi condenado ao suicídio,
acusado de desprezo aos deuses do Estado; sua defesa frente ao tribunal, registrada
por Platão no diálogo Apologia de
Sócrates, inclui, logo no início, uma profunda reflexão sobre a sabedoria
humana.
Como alguns amigos afirmavam que o oráculo de Delfos houvera dito que
Sócrates era o mais sábio dos homens – e isso compôs parte da acusação -, o
filósofo rebate a soberba de um adversário dizendo que “Aquele homem acredita
saber alguma coisa sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou
certo de não saber”.
A ideia é bastante inteligente e complexa e, mesmo resumido no
clássico: “Só sei que nada sei”, permanece demonstrando sabedoria. É evidente
que Sócrates não está afirmando que nada sabia no sentido literal, mas, isso
sim, que nada sabia por completo, exceto o conhecimento que tinha sobre as suas
próprias ignorâncias.
Poderíamos chamar esta postura – saber que não se sabe tudo, o
tempo todo, de todos os modos – de “sábia ignorância”, ou, como denominada em
obra de Nicolau de Cusa no século XV (antecipando a dúvida metódica de
Descartes), a douta ignorância.
Ainda vale! A consciência dos nossos desconhecimentos e, portanto,
a procura incessante por uma formação continuada, não é só sinal de necessária
humildade; é, antes de tudo, poderoso antídoto às eventuais arrogâncias que
vitimam mais os seus praticantes do que certos algozes involuntários.
Um poço de ignorância? Precisamos, vez ou outra, entender a máxima
popular, e citá-la de novo: “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa
a fazer para sair dele é parar de cavar”.
Saber e admitir que não sabe interrompe a escavação...
(Extraído do livro Não se
desespere! – provocações filosóficas).