terça-feira, 8 de novembro de 2022

PALAVRA DO ESPECIALISTA

A igreja e o ensino bíblico descontextualizado

 Extraído de https://www.dentrodahistoria.com.br/

    A Educação secular leva em conta o sujeito em sua totalidade (intelectual, espiritual e subjetivamente). O conhecimento prévio, isto é, as experiências que ele adquiriu no ambiente onde vive é de suma importância para a aquisição de novos saberes no mundo escolar.  É por isso que na Educação Infantil, bem como nos primeiros anos do Ensino Fundamental, é muito importante o lúdico (brincadeiras) no processo de ensino/aprendizagem, para que a criança consiga, por meio do que já conhece, fazer uma ponte para o novo conhecimento que lhe será apresentado.

     Cantigas de roda, parlendas, jogos, dentre outras diversões infantis, fazem parte da realidade da criança e, por isso, são aproveitadas no processo de aprendizagem para proporcionar-lhe um ambiente familiar, a fim de que possa, por meio do que lhe é comum, adquirir os novos saberes escolásticos.

     Assim também seria interessante que em trabalhos cristãos voltados ao ensinamento desse público, como a EBD, por exemplo, a igreja permitisse a introdução de brincadeiras, literatura infantil secular, jogos, e outras coisas que tenham significado afetivo para a criança, a fim de lhe trazer um sentimento de propriedade, ao invés de lhe aplicar, já de vez, um assunto bíblico, por vezes desconhecido, introduzido por pessoas nunca vistas antes e num ambiente sem qualquer conexão de vida comum para ela.  

     SPURGEON (2004, P.20), comentou que foi repreendido por um cristão que o viu brincando no playground com algumas crianças, dizendo não ser apropriado para um filho de Deus aquela atitude. O "príncipe dos pregadores", como é conhecido o referido autor, respondeu-lhe que se ele pretendia levar as crianças para os bancos da igreja, era sua responsabilidade participar dos passatempos deles. 

     A Bíblia narra a história na qual Jesus repreende seus discípulos por tentarem forçar as crianças a se comportarem como adultos na presença dele. O Mestre lhes alertou a não tentarem impedi-las de se chegarem a ele, dizendo-lhes que o céu é o lugar delas, e só entraria lá quem como tal se comportasse.

     É claro que Jesus não estava dizendo que os adultos devam agir de maneira infantilizada, mas que é necessário respeitar a criança em seu modo peculiar de compreender e agir no mundo. Entender o comportamento infantil nos ajuda a ganhar esse público para Cristo, bem como sabermos comunicar o Evangelho em sua  linguagem própria e de maneira acessível ao seu entendimento. 

     Algumas igrejas admitem teólogos citarem literaturas seculares, livros filosóficos etc. para o público adulto, mas não permitem um professor de EBD cogitar trazer histórias de literatura infantil para suas crianças, se não forem de cunho religioso ou bíblico. Essa proibição se dá, na maioria das vezes, sob o pretexto de serem “histórias mentirosas”, sem proveito espiritual, e que, por isso, a torna profana (não sagrada, pecaminosa).

     Todavia, essa confusão é fundamentada pelo desconhecimento desses líderes a respeito da diferença entre “ficção” e “mentira”, "sagrado" e "profano". De acordo com Januária Alves, em seu artigo publicado na Revista Educação, "a escritora canadense Margaret Atwood diz que há uma grande diferença entre ficção e mentira. E o que marca essa distinção é que a ficção busca dizer a verdade sobre os seres humanos, ao contrário da mentira". Janaína ainda cita as palavras de outro escritor, Salman Rischdie, o qual disse que  “O propósito da literatura é revelar verdades. Já o propósito da mentira é o de obscurecer a verdade. Portanto, de várias maneiras, ficção e mentira são os opostos um do outro...”. Ou seja, a ficção é o modo de se apropriar de uma história ou um fato analógico para mostrar a realidade. 

     Levando para a Bíblia, os Salmos, assim como Eclesiastes, são livros poéticos, recheados de analogias e linguagem figurada, o que quer dizer que grande parte das narrativas desses livros não são literais, mas apenas espelhados na realidade, assim como toda literatura. 

     É exatamente isso que observamos em gêneros textuais como a fábula e o apólogo. O primeiro escancara os vícios (coisas negativas) do comportamento das pessoas, tais quais a mentira, hipocrisia, orgulho etc., por meio de histórias protagonizadas por animais com características humanas, deixando uma lição de moral. E o apólogo, além de apresentar práticas ruins comuns à raça humana, também procura apontar virtudes que devem ser exaltadas, através de narrativas entre seres inanimados , assuntos esses riquíssimos para se trabalhar os valores e comportamentos sociais e cristãos. 

     Não podemos ensinar nossas crianças a desprezarem tudo aquilo que não tiver o nome de Deus explícito, como se isso fosse característica de que algo não pertence a Ele. A música “Parabéns pra você”, por exemplo, não há menção a Deus, porém ninguém vê isso como prova de que essa canção pertence ao Inimigo. O livro de Ester também não apresenta o nome Deus, mas compreendemos a ação dele em toda a narrativa.

     Assim também, discriminar hábitos comuns do dia a dia como a leitura de literatura secular infantil como material suplementar, não é atitude de prevenção, mas no mínimo, falta de conhecimento sobre o quanto nossas crianças são inteligentes e capazes de entender quando utilizamos tais materiais para servir de ponto de acesso em assuntos chaves do nosso livro mestre que é a Bíblia Sagrada. Jesus fazia isso o tempo todo usando as parábolas. 

     Conversar com elas sobre livros seculares que leem, desenhos e filmes que veem ou  jogos que gostam não é profanar o sagrado, mas abrir espaço para que, por meio de suas experiências seculares, possam adentrar nos conceitos cristãos/espirituais, e também é uma porta para orientarmos o seu bom uso.  

     No livro "A criança, a Igreja e a missão", Dan Brewster traz como apoio a seu pensamento concernente à contextualização da educação espiritual da criança, a defesa de Steve Wamberg, o qual declara ser importante relacionar as Escrituras à vida cotidiana, fazer perguntas abertas, discursivas, que demandem pensamento maduro e abordar um amplo conjunto de assuntos atuais e relevantes (2015, p.135).

     Alguns filmes infantis e desenhos animados também são ótimos materiais para nos ajudar a iniciar um assunto sobre temas que são tratados pela Palavra de Deus. A igreja não pode querer alienar as crianças, fingindo que elas não têm uma vida extra templo. 

     Outro suporte interessante são as cantigas de roda, como, por exemplo, “Atirei o pau no gato”, na qual o professor poderia mudar para uma versão onde se canta “não atirei o pau no gato”, e, a partir daí, ensinar os valores cristãos e despertar-lhes a empatia. Clique e veja essas versões: 1. Não atire o pau no gato; 2. Não atirei o pau no gato.

     O próprio Jesus disse que "os filhos das trevas são mais astutos entre si do que os filhos da luz", isto é, são mais ágeis no pensamento, mais habilidosos (Lc 16.8)¹.

     Não podemos chegar à mente de uma criança sem primeiro alcançar seu coração.  Ela precisa se sentir confortável, confiante, para se efetivar a interação necessária para ministrarmos os ensinamentos cristãos.

     Saibamos, pois, tratar os pequeninos respeitando suas peculiaridades, próprias de criança, para evitarmos repetir ideias ultrapassadas, espelhadas em tempos nos quais se compreendia a idade infantil como adultos em crescimento. Contra essa atitude de muitas igrejas em relação às crianças, Brewster salienta que os líderes "devem ver e apreciar cada criança como uma obra em progresso, não como um produto finalizado" (2015, p.149)

     "DEIXEM VIR A MIM AS CRIANCINHAS E NÃO AS IMPEÇAIS", ordenou o Grande Mestre (Mt 19.14).

No amor de Cristo,

Leila Castanha

2022

Clique e veja como esse trabalho é interessante

 

BIBLIOGRAFIA
BFEWSTER, Dan. A Igreja, a criança e a missão. Viçosa, MG:  Ultimato, 2015  Ficção, folclore e fake news: como as histórias nos revelam a realidade (revistaeducacao.com.br)¹Versão NVI (Nova Versão Internacional)

SPURGEON, C.H. Pescadores de crianças: orientações práticas para falar de Jesus às crianças. São Paulo: Shedd Publicações, 2004.


      Professora Leila Castanha 

     

Graduada em Letras, Pedagogia, Bacharela em Teologia, pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura no contexto educacional, pós-graduanda em Teologia e Pensamento Religioso, pós-graduanda em Literatura Brasileira no Contexto da Literatura Universal . 

Atua como professora de Língua Portuguesa, Língua Inglesa (anos iniciais do ensino fundamental) e Ensino Religioso, em São Paulo - SP 

  

 


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