A DEPRESSÃO NAS LINHAS DOS VERSOS:
Análise dialógica entre o poema Nascer de Novo, de Drummond, e a Bíblia
De
acordo com o Dr. Ismael Sobrinho – médico, especialista em psiquiatria e
psicogeriatria, há alguns traços comportamentais em pessoas que têm incidência
de depressão, dentre as quais ele destaca “o perfeccionismo, a preocupação excessiva,
a baixa autoestima, a timidez e alta sensibilidade à críticas” (2019, p.34).
Sobrinho
reitera que “sendo as causas da depressão multifacetadas, há a participação de
componentes genéticos, psicológicos, ambientais, espiritual e neuroquímicos” (2019,
p.63). No entanto, o que nos importa por ora, é compreender que a depressão existe
e está em plena atividade, embora haja cristãos que insistam em negar sua
ocorrência no meio dos fiéis, conforme se verifica nas palavras do citado
médico:
Em mais de uma década trabalhando como
psiquiatra vejo que há resistência a tratamentos por parte de alguns cristãos,
ou o sentimento de culpa por acreditarem que seus episódios depressivos decorrem
de pecado ou por não estarem orando o suficiente (2009, p. 55).
Contrário
a esse tipo de pensamento, igualmente rejeitado pelo psiquiatra em questão, Charles
Spurgeon, conhecido como o Príncipe dos Pregados do século XIX, e vítima
de terríveis crises depressivas, descreveu bem a depressão e a relacionou com
tipos de doenças que “afetam o cérebro e todo o sistema nervoso...”, e
que, de forma involuntária, isto é, independente da vontade da pessoa, traz
sobre o doente “a infelicidade da mente, a depressão do espírito e a aflição do
coração (...)”. Ele continua dizendo que
pode nem haver razão real para a tristeza e, mesmo assim, “você pode vir a tornar-se
um dentre os homens mais infelizes, porque, por ora, seu corpo subjuga a sua
alma” (2015, p.40).
Assim
como ocorreu a Spurgeon, é possível verificarmos sintomas de depressão em
personagens bíblicos tais como os profetas Elias e Jonas - que pediram para
morrer; em Ana – que rejeitou comer e só chorava; em Davi – que compôs inúmeros
salmos falando de sua inércia diante de sentimentos depressivos; em Jó e
Jeremias – que diante de tamanha dor e sentimento de inutilidade desejaram
nunca terem nascido; e em Noemi – que após perder o marido e seus filhos,
confessou se sentir uma pessoa amarga, isto é, sem alegria na vida.
Uma
vez entendida a relevância desse assunto, vamos nos ater a esse tema apresentado
pela via da literatura secular, exposto em gênero lírico, isto é, por
meio de poemas. Vale lembrar que ao falarmos em poema, tratamos de um gênero textual escrito em versos e separado em estrofes - verso é cada linha de
um poema, e estrofe é o conjunto de versos.
Do mesmo modo, ressalto a importância em
se fazer distinção entre poema e poesia, uma vez que o primeiro se
trata da estrutura do texto que é escrito em verso e “a poesia é comunicação,
efetuada por meio de palavras ou não, geralmente permeada por conteúdos
psíquicos, sejam eles de ordem afetiva, sensorial ou conceitual, sempre
repletos de sensorialidade ou sentimentalidade” (1). Ou seja, podemos
encontrar poesia em qualquer coisa que for dotada de sentimento, de emoção, de
sensibilidade, inclusive nos poemas.
Assim também é
importante, ao ler esse gênero literário, não confundir autor e eu
lírico – aquele é o que escreve o poema – e o outro é a voz ou o sujeito
por meio de quem o autor expressa sua subjetividade. Com relação a esse
sujeito poético foi que o poeta Fernando Pessoa iniciou um de seus famosos
versos explicando que “o poeta é um fingidor”, isto é, nem tudo o que ele
expressa no poema é de experiência própria, mas é vivido pelo eu lírico.
Uma vez entendido o que é poema e a realidade da depressão nos
dias hodiernos (atuais), vamos imergir na subjetividade de Carlos Drummond de
Andrade, considerado um dos maiores poetas do Brasil, e indispensável no entendimento
e consolidação da escola literária denominada Modernismo. (2)
Uma das características de seus poemas é a criticidade com que ele trabalha temas diversos e a autorreflexão, ora mostrando um desencanto com a vida, ora aliando à triste realidade de viver uma receita que, ao menos, possa minimizar o torturar-se e o consumir-se que, a princípio, ele enxerga ser o ato de viver. Como exemplo desse modo de entender a existência, segue o poema Nascer de Novo, do qual faremos uma análise comparativa fazendo um diálogo com a Bíblia Sagrada.
Assim, façamos uma leitura cuidadosa, sentindo cada palavra do poema.
NASCER DE NOVO
Nascer, findou o sono
das entranhas.
Surge o concreto,
A dor de formas
repartidas,
Tão doce era viver
Sem alma, no regaço
do cofre maternal,
sombrio e cálido.
Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste
lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e sua lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se,
consumir-se
à mingua de qualquer
razão de vida?
Eis que um segundo
nascimento,
não adivinhado, sem
anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
o tempo se redoura,
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de
existir.
O real veste nova
realidade,
a linguagem encontra seu
motivo
até mesmo nos lances de
silêncio.
A explicação rompe das
nuvens,
das águas, das mais vagas
circunstâncias:
Não sou eu, sou o Outro
que em mim procurava seu
destino.
A minha festa,
o meu nascer poreja a
cada instante
em cada gesto meu que se
reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.
Nos primeiros versos, parece-me ouvir Jó, sucumbido pela dor,
reclamando por ter nascido, de modo que, ao refletir sobre a realidade da vida,
ele preferiu ter sido abortado a nascer (Leia Jó 3.1-23). E o primeiro verso desse
poema declara que a vida é feita de dores que se apresentam de várias formas,
de modo que o eu lírico, assim como Jó, se desencanta dela. Eis aí um sintoma
característico de depressão, pois, sob sua influência “algumas pessoas perdem o
interesse e o prazer a tal ponto que ficam apáticas, alheias ao mundo,
desinteressadas, passando a apresentar vontade recorrente de morrer”, conforme assevera o Dr. Ismael Sobrinho, (2019, p.91)
Voltando ao poema de Drummond, na segunda estrofe, o eu
lírico mostra outro aspecto da vida que o deprime: a falta de resposta às suas indagações – “Sondamos, inquirimos sem resposta”. Ele pergunta por
que nada é tão simples como do outro lado (no ventre materno), e torna a se
perguntar se o que sobra da vida (a qual ele sente como sendo um lugar de exílio)
“é tudo guerra e dúvida”. Para ele, suas indagações sem resposta, e a luta
diária que se empreende pela vida, fá-lo cogitar que viver nada mais é do que torturar-se,
consumir-se a procura de respostas que não existem, em outras palavras, ele
possui a ideia de que viver é lutar por nada.
Será que você, leitor, se sente ou já se sentiu desse modo?
Creio que todos nós já vivenciamos decepções na vida que nos fizeram indagar o
seu sentido real. Isso é refletir, é ter consciência, é ser humano. O perigo acontece
quando esses sentimentos tomam conta de nós e nos deixam apáticos com a vida, muitas
vezes, pensando em desistir dela. Esse pensamento é perigoso e é necessário buscar
ajuda, inclusive psicológica.
Mais adiante, o poema dá uma girada na direção oposta ao que começou, pois na terceira estrofe o eu lírico vivencia uma nova experiência de vida. Ele se sente como se nascera de novo. Sobre esse novo nascimento, ele diz que aconteceu como no primeiro, sem que ninguém soubesse ao certo o momento exato. No primeiro nascimento, após o parto, seu protesto é em relação a sair do conforto do silêncio e da inocência de quem nada sabe, ao desligar-se da mãe cujo ventre o guardava em segurança, e adentrar em uma vida de incertezas.
Ao nascer de novo, é como se ele encontrasse novamente
alguém a quem se ligar para encontrar a estabilidade perdida pelo parto, reencontrando o
conforto de não estar só na vida. Segundo o poema, esse renascimento não
aconteceu de forma literal, mas foi gerado pelo sentimento chamado AMOR. Bem diz
a Bíblia que “o amor é o vínculo da perfeição” (Leia Cl 3.14). Ele nos liga a tudo
que é bom e perfeito.
Uma vez amando, a atenção do eu lírico não está mais em si
mesmo, mas no objeto amado, isto é, na pessoa a quem ama. Ele afirma não ser
mais ele, mas o outro que procura encontrar nele o seu destino. Nessa nova
realidade o eu lírico encontra sentido em viver, embora não compreenda a vida por
inteiro, “a linguagem” – as palavras – “encontra seu motivo, até mesmo no
silêncio”, confessa ele. Afinal, o amor é expresso pelo sentimento e não por
palavras, de modo que sua realidade pode ser sentida mesmo sem ser
compreendida.
O sentimento que ele experimenta é suficiente para lhe dar um
novo significado para a vida. E, por amar, ele passa de ser pensante a sujeito atuante,
de modo que ele diz renascer em cada gesto seu “que foi reduzido a ser
retrato, espelho e semelhança de gesto alheio aberto em rosa”. Nessa nova realidade, o eu lírico vive para o outro, e suas emoções são proporcionadas à medida que o outro se satisfaz,
uma vez que se sente responsável pela completude alheia.
A Bíblia há muitos séculos já afirmava que podemos ter uma nova vida mesmo nessa existência, que é possível nascermos de novo por meio de uma vivência regida pelo amor. João, em sua primeira carta, admoestou os irmãos a não se esquecerem que desde o princípio a mensagem pregada foi amarem-se uns aos outros, e conclui sua admoestação declarando o seguinte: “Sabemos que já passamos da morte para a vida e sabemos isso porque amamos nossos irmãos. Quem não ama ainda está morto” (3.14) - grifo meu. Percebeu quanta verdade está implícita no texto do poema? Amar, segundo Jesus, é estar pronto para dar a vida pelo outro.
Embora já saibamos que são diversas as causas da depressão, algumas pessoas estão sofrendo desse mal por causa do seu egoísmo exacerbado, de querer para si aquilo que é do outro ou em viver uma vida de comparação e disputa que acaba por levá-lo a sentimentos de humilhação e baixa autoestima. Talvez você seja uma dessas pessoas que, assim como o eu lírico do poema de Drummond, vive maldizendo a sorte porque seu pensamento está muito concentrado em si mesmo e, por isso, não consegue ver a beleza da vida fora dos teus próprios interesses.
Sendo esse o caso, Jesus te faz o mesmo alerta que fez a Nicodemos quando este foi procurá-lo: "É necessário nascer de novo”. Esse nascimento não é da carne, como explicou Cristo, mas uma vida no Espírito de Deus. Em Cristo, somos capazes de amar até os nossos inimigos, e, por certo, com a visão carregada do amor divino, você será capaz de enxergar a vida exatamente como uma rosa, flor esta citada no final desse magnífico poema: apesar de ser cheia de muitos e pontiagudos espinhos, ela traz consigo beleza e perfume singulares.
Pois bem, leitor, esse é
o papel da literatura lírica, fazer surgir e expor os sentimentos, percepções,
incômodos, medos, indagações, alegrias, paixões, e nos fazer refletir para arrancar
de nós o que nos faz seres humanos: a subjetividade escondida em nosso eu
interior.
Que a graça de Deus e o amor de Cristo sejam transbordantes em teu coração, fazendo-te bênção para os que procuram em você encontrar o seu destino.
08/7/2022
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond
de. A paixão medida. 5 ed.- Rio de Janeiro: Record, 1998
ESWINE, Zack. A
depressão de Spurgeon: esperança realista em meio à angústia. São José dos
Campos, SP: Fiel, 2015
SOBRINHO, Ismael.
Depressão: o que todo cristão precisa saber. São Paulo: Editora Vida, 2019
_______________________________________________________________
Notas de rodapé
(1)
https://mundoeducacao.uol.com.br/literatura/o-que-poesia.htm
(2)
https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/por-que-carlos-drummond-e-tao-importante-para-a-literatura-brasileira.htm
Professora Leila Castanha
Graduada em Letras, Pedagogia, Bacharel em Teologia, pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura no contexto educacional, pós-graduanda em Teologia e Pensamento Religioso, pós-graduanda em Literatura Brasileira no Contexto da Literatura Universal .
Atua como professora de Língua Portuguesa, Língua Inglesa (anos iniciais do ensino fundamental) e Ensino Religioso, em São Paulo - SP
Em seus passos: estudos bíblicos