segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A RESIGNAÇÃO COMO CUMPLICIDADE


O escritor suíço Denis de Rougemont, um arguto defensor da unidade europeia e, especialmente, um estudioso da ocidentalidade, disse algo (em meados do século passado) que inspirou discursos conhecidos de muitos políticos: “A discordância de uma sociedade começa quando o homem pergunta a si próprio: ‘O que irá acontecer?’, em vez de inquirir: ‘O que posso eu fazer?’”.
A decadência (seja ela na sociedade mais ampla, seja em quaisquer instâncias como família, trabalho, política etc.) principia quando o imperativo ético da ação é substituído pela acomodação e pela espera desalentada, isto é, quando se abre mão do dever que emana da liberdade e se exige, para ser exatamente livre, uma intervenção consciente. Isto é lembrado em função de um sorrateiro entorpecimento que acomete a muitos, aniquilando pouco a pouco a capacidade de reagir e apontar como fora de lugar muitas coisas que parecem encaixar-se, sem arestas, nas vida cotidiana e que precisam ser fortemente rejeitadas, de modo que esta não dê lugar ao abatimento que apenas aguarda, em vez de buscar provocar resultados.
Estamos nos acostumando - com rapidez e sem resistência ativa – com alguns desvios que parecem fatais e inexoravelmente presentes, como se fizessem “parte da vida”: violência, desemprego, fome, corrupção e outros.
É a prostração como hábito! É o conveniente pesar estampado no rosto e nas palavras, para disfarçar uma simulada impotência individual, mas que, no fundo, é expressão de  um egonarcisismo indiretamente conivente. Tão confortável assim pensar... Lembre-se, então, de Fernando Pessoa, para o qual “na véspera de não partir nunca, ao menos não há que arrumar malas”.
Pode-se argumentar que, felizmente, ainda há muita esperança. Mas, como insistia o inesquecível Paulo Freire, não se pode confundir esperança do verbo esperançar com esperança do verbo esperar. Aliás, uma das coisas mais perniciosas que temos nesse momento é o apodrecimento da esperança; em várias situações as pessoas acham que não tem mais jeito, que não tem alternativa, que a vida é assim mesmo... Violência? O que posso fazer? Espero que termine... Desemprego? O que posso fazer? Espero que resolvam... Fome? O que posso fazer? Espero que impeçam... Corrupção O que posso fazer? Espero que liquidem... Isso não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. E se há algo que Paulo Freire fez o tempo todo foi incendiar a nossa urgência de esperanças.
Seria impossível também usar aqui palavras como desalento, desânimo, ou até covardia tolerante. Julio Cortazar, o argentino que deu novos contornos à prosa latino-americana dos anos 1960 em diante, afirmava que “a covardia tende a projetar nos ouros a responsabilidade que não se aceita”. Ou, pensado de outra forma, visite-se o romancista francês Jules Renard, com sua obra permeada por ironias cruéis (uma delas aqui representada em 19587 por Cacilda Becker com o nome de Pega-fogo): “Dando ouvidos apenas à sua coragem que nada lhe dizia, ele absteve-se de intervir”...
Por isso, resignar-se é, de forma contundente, concordar involuntariamente ou, até, ser cúmplice passivo. Melhor ficar com o vaticínio de André Dostouches, compositor e diretor artístico da Ópera de Paris no reinado de Luís XV; o músico, especializado em tragédias líricas (como as que muitos pensam estar vivendo), advertia que “os ausentes nunca têm razão”. 

Mario Sergio Cortella


(Extraído de “Não nascemos prontos – provocações filosóficas”)


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